domingo, 19 de janeiro de 2014

Não há “ÓSCAR” sem “JSÓC”. Ou quase.

18/1/2014, China Matters
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Navio porta-contêiner MAERSK Alabama atacado por piratas somalis em Capitain Phillips
Hoje em dia parece obrigatório: pelo menos um filme construído para celebrar os feitos mortíferos das Forças Especiais dos EUA tem de ser indicado para ganhar um Óscar.

Ano passado, foi A Hora mais Escura.

Esse ano, há duas indicações na categoria “Soldado norte-americano mete bala na testa de rapaz de pele escura”.

Captain Phillips (trailer a seguir), sobre os piratas da Somália, já tem indicação para concorrer ao prêmio de Melhor Filme.



E o COEC-EUA também está representado por Dirty Wars, baseado no livro de mesmo título, de Jeremy Scahill, candidato a Melhor Documentário.

Fato é que nem um nem outro desses dois filmes tem qualquer chance.

Captain Phillips já está sendo demolido pelos “comentaristas de Óscar” de sempre, com esforços no campo da “história real”, que inclui até grande campanha de propaganda de alto nível das reclamações da tripulação do MAERSK Alabama, segundo as quais o capitão estava mais para Capitão Queeg, de A nave da revolta, que para Jack Aubrey, de Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo. Nem Paul Greengrass (diretor), nem Tom Hanks (personagem-título) foram indicados a qualquer prêmio e Captain Phillips provavelmente ficará na poeira, atrás de meia dúzia de outros indicados, quando se contarem os votos para o melhor filme.

Quando a DirtyWars [Guerras Sujas] (trailer a seguir), fizeram-se várias escolhas duvidosas, para conseguir meter as mais de 600 páginas do livro de Scahill no formato de filme-thriller-reportagem de 82 minutos, usando, ironicamente, os mesmos recursos de alta definição/câmera-na-mão/teclados frenéticos que Greengrass usou com tanta eficácia nos filmes de Jason Bourne (e empurrando Scahill um pouco demais para o centro da narrativa).


Aos 24 minutos do filme, Scahill, depois de fazer compras no Brooklyn e lamentar o tédio da “vida comum”, discute um massacre em Gardez, Afeganistão, cometido por algum uniforme dos EUA e declara que, em dez anos de trabalho como correspondente de guerra, “nunca ouvi falar de “JSÓC/COEC-EUA”.

A frase provocou-me uma risadinha involuntária, nada, com certeza, semelhante à reação que os autores do filme esperavam obter, quando se dispuseram a documentar uma operação norte-americana que envolveu:

(a) matar as pessoas erradas;
(b) numa festa de batizado de criança; operação na qual morreram (b1) duas mulheres grávidas e
(c) um comandante da polícia afegã; o qual
(d) fora treinado em vários programas de treinamento com as forças dos EUA e que
(e) sangrou durante várias horas, até morrer, depois de ser ferido à bala, porque
(f) o helicóptero de socorro não apareceu, enquanto
(g) os soldados dos EUA montavam um cenário para o relatório da operação, a qual
(h) um familiar de uma das vítimas estava gravando com o próprio celular; e
(i) gravação que mostra os soldados dos EUA que escavavam com facas os cadáveres das mulheres para recolher as balas, para que as mortes pudessem ser informadas aos correspondentes estrangeiros como “brutal crime de honra cometido pelos Talibã”.
Jeremy Scahill

O massacre de Gardez aconteceu em fevereiro de 2010. Em 2008, o Comando das Forças Especiais Conjuntas dos EUA já estava em todas as manchetes, por suas ações no Iraque, graças ao livro Plano de ataque de Bob Woodward e ao presidente Bush, que dizia que o “Comando das Forças Especiais Conjuntas dos EUA é fantástico!” Todo mundo ouviu.

Esses são contexto e situação que, tenho certeza, Jeremy Scahill, autor de Dirty Wars, o livro, conhecia bem; e ele, sim, apresenta a experiência do Iraque e também a frase de Bush, em seu livro.

Felizmente Dirty Wars, o filme, retoma o pé, quando discute o abraço apaixonado entre o presidente Obama e as forças de operações especiais, caso de amor que vai muito além de qualquer coisa que George W. Bush tenha algum dia sonhado, simbolizado tanto pela campanha de assassinatos universais realizada pelas forças de operações especiais sob o comando de Obama como pela fúria com que o presidente virou as armas delas contra um cidadão norte-americano, Anwar al-Awlaki, no Iêmen.

Dirty Wars, o livro
Ironicamente, o livro de Scahill fecha o circuito da temporada de Óscares, revelando os bastidores do romance entre o presidente Obama e o JSÓC-COEC-EUA: todos se encontram no resgate do Capitão Phillips! Como Scahill escreve:

Pop. Pop. Pop.

Três tiros, quase no mesmo exato momento, por três diferentes atiradores. Três piratas somalianos mortos. (...) Os três piratas somalianos mortos, o capitão resgatado e Obama, parece-me, muito tangivelmente, descobre que tinha esse poder, como presidente” – relembrou [jornalista Marc] Ambinder (...) Depois da vitória sobre os piratas (...) os soldados do Comando de Operações Especiais Conjuntas dos EUA, COEC-EUA, passaram a ser os ninjas preferidos de Obama. Depois da operação Alabama, “O presidente convidou pessoalmente os comandantes das Forças Especiais à Casa Branca, e pediu que passassem a exercer papel integral de polícia...”

Não surpreende que a Casa Branca de Obama esteja tão empenhada em melhorar a reputação de sua bem-amada máquina de matar global: primeiro, com A Hora mais Escura (filme que, graças à ajuda que recebeu do governo, foi convertido em cause celèbre) e, agora, com Captain Phillips (Paul Greengrass queria um navio da Marinha de verdade e... conseguiu!). Scahill, é claro, por seu lado, teve de enfrentar o efeito oposto, de apedrejamento non-stop.

OK. Lembro que ÓSCAR nunca se escreve sem JSÓC. E a Academia, talvez, sinta-se tão desconfortável com a ideia da execução extrajudicial quanto pode sentir-se, como nesses dois filmes. Se você for obrigado a assistir a um dos dois, assista Dirty Wars. E, se puder, leia o livro.  


Nota dos tradutores
[1] Orig. Joint Special Operations Command, JSOC (Comando de Operações Especiais Conjuntas dos EUA, COEC-EUA).

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